29 de abril de 2016

0

A cor da chuva


A cor da chuva, Claudio Pfeil


O Rio hoje, um certo ar de Paris. 

Chuva, luz fosca, escorrer melancólico das horas refletido no asfalto, fachadas sombrias, mudas, janelas fechadas. Até a montanha que vejo do meu escritório, sempre verdejante, hoje parece diluir-se nas gotas dançantes da vidraça. O Rio descobre-se cinza, parece estranhá-lo, padece da monocromia e pergunta-se: onde estou, quem sou? Em Paris o cinza é arte, no Rio, estrangeirice.

Lembrei de minha senhoria da rue Hermel, uma senhora elegante, sempre nos trinques. Numa tarde chuvosa, atravessávamos o Bois de Boulogne em seu carro quando subitamente me indagou: 

 - Vous avez remarqué que la pluie à Paris est argentée?

Quase tive um sobressalto: "você já reparou que a chuva de Paris é prateada?" Achei graça com o que para ela parecia óbvio, para mim não. Passei a prestar mais atenção. 
Começou com a prata, naquela tarde em Paris. Desde então, toda vez que chove, abro bem os olhos e me pergunto: que cor tem essa chuva? 

A chuva chove, molha, e eu vivo inventando uma cor para ser só dela. 

A chuva do Rio é maravilha.
Paris argentum, Rio mirabilis.

Claudio Pfeil

13 de abril de 2016

0

(Minha) Hora e vez do Diospyros Kaki




Confesso que sempre o achei bonito. Doce e saboroso também. Mas não a ponto de preferi-lo a outros integrantes da fruteira:  manga, abacaxi, abacate, tangerina, laranja. Desde minha infância lembro-me dele à mesa, meus pais fazendo-lhe elogios, enaltecendo suas virtudes. Acho que fiquei com a ideia de que ele era mais para o gosto dos adultos que das crianças. Às vezes o tinha nas mãos, sem muita alegria ou convicção, mordia-o, achava bom – bom? – bem, sem muita exaltação. Parecia meio sem graça, o sabor muito aquém da cor, mais para se ver do que para se comer. Sem falar na viscosidade esquisita, os dedos lambuzados de mais para um prazer de menos. Anos a fio o desdenhei, fiz pouco caso dele, o preteri, sem muita consciência de fazê-lo. Simplesmente vivi com ele deixando-o para lá: o conheci desconhecendo-o, o avistei sem vê-lo, o provei sem descobri-lo. E mais do que isso: sem saber o que eu estava perdendo. Tão frequentemente humano, não?

Mas sempre é hora de despertar para a extraordinária novidade daquilo que pensamos conhecer bem e que, na verdade, não conhecemos. Foi o que aconteceu comigo. A cor, sempre a vibrar. Eu já deveria ter atinado: cores não vibram à toa. Macio no toque, a pele muito fina, delicada como seda oriental. Amadurece rápido, tão rápido, que de um dia para o outro, se abre no simples apertar de dedos e desmancha-se na língua como um pudim. E que fineza de sabor! - sutil como flor. Só poderia ter vindo do Oriente.

Seu nome, que origem tem? Não sabia, soube hoje. Em Portugal, chamam-no de dióspiro (diospyros), do grego dióspuron que significa "alimento de Zeus". É a fruta que Ulisses comeu na Odisséia e que o fez esquecer tudo. Entre nós, cá, aqui: caqui, do japonês kaki. Dióspiro ou caqui, é realmente dos deuses. Não é à toa que levei tanto tempo para finalmente descobri-lo: chegar ao paladar do Olimpo requer aprendizagem, longa maturação dos sentidos.

Seja como for, agora é (minh)a hora e (minh)a vez do caqui, não tenho mais um segundo sequer de sabor a perder: A vida é feita para a gente se lambuzar: a viscosidade do caqui é promessa. Bora fazer uma kakipirinha?

Claudio Pfeil

9 de abril de 2016

0

Entre concordar e compreender





Uma leitora escreveu-me uma longa mensagem. Naturalmente, não vou entrar no teor da mesma, seria totalmente indelicado e desrespeitoso. Permitirei-me apenas desenvolver um ponto que me chamou particularmente a atenção, o qual, no meu entender, sustenta e fomenta essa guerra entre diferentes « discursos », partidários ou não, seja nas redes sociais, seja no bate-boca, ou ainda no corpo a corpo. 

A leitora faz parte de sua admiração pelo meu trabalho, mas diz também estar bastante chateada e desapontada em relação ao meu "ponto de vista". De minha parte, li e reli atentamente sua mensagem, a qual pode ser resumida nisto : ela não concorda comigo, e por conta disso, não compreende minha posição. Por vezes, tive a sensação de que ela fazia menção a coisas que não tinham nada (ou pouco) a ver com minha escrita; por vezes, pareceu me desabonar pretextando exatamente a mesma coisa que eu penso, certa como 2 + 2 são 4 de estarmos às antípodas um do outro. Ou seja: ela se chateia comigo por eu não estar de acordo com ela, e embora diga respeitar meu ponto de vista, não consegue compreendê-lo uma vez que discorda dele, ainda que os motivos por ela alegados não difiram em essência dos que eu costumo sustentar através da minha letra. Ela afirma defender a democracia, eu também. Ela está certa disso, eu também. Em suma, estamos e não estamos no mesmo barco.


A primeira coisa que me ocorreu foi lhe indagar: você leu meu artigo? Ela demorou-se um pouco a responder. Insisti. Finalmente disse : não. Em seguida, fez algumas considerações mais, e despediu-se anunciando a intenção de não mais acompanhar meu trabalho.



O que dizer? Deixei-a à vontade para fazer o que lhe conviesse. Convidei-a, antes, a ler meu texto e, caso naturalmente desejasse, a dialogar depois. A saber que, dialogar exige, como condição sine qua non, que os interlocutores observem rigorosamente uma diferença radical. Que diferença é essa ?



Compreender não tem nada a ver com concordar, concordar não tem nada a ver com compreender.



Pode-se concordar compreendendo.

Pode-se compreender discordando.

Pode-se não compreender concordando.

Pode-se não compreender e não concordar.



Não sou bom matemático, mas nessa equação envolvendo gosto e pensamento, aquela aula chata e complicada de análise combinatória não só cabe como serve para evitar a guerra que estamos vivendo atualmente no front político entre palpiteiros e debatedores (« debatedores ») entrincheirados. Ouço e leio muita gente se indignando contra a « disseminação do ódio », mas a maioria não move uma palha mental sequer para evitá-lo, pelo contrário, quer porque quer que o outro concorde com ela. Nenhum dos lados quer dialogar : o que cada um quer é estar certo, que o outro lhe dê razão. O objetivo não é se acordar, ver de que maneira diferentes perspectivas podem ampliar a visão de todos, mas de fazer com que um se dobre à certeza do outro. Do lado oposto da trincheira, mesmíssima tática, quase sempre malograda. A guerra está deflagrada, a língua come solta. Conheço uma que defende a democracia com tantas unhas e dentes que facilmente engoliria aqueles que acusa de fascistas só por não estar de acordo com ela. O resultado é tanto o desgaste pessoal quanto o deterioramento das relações : no melhor dos casos (como o da leitora em questão), a pessoa se sente chateada e desapontada, em casos mais dramáticos, ofendida e mortificada por uma miscelânea de sentimentos de amargura e rancor.



Há que se atentar, repito, para a diferença radical entre concordar e compreender. Vou dar um exemplo literalmente feijão com arroz: uma amiga minha quando vem à França, traz feijão e arroz na mala. Sabe por quê ? Ela torce o nariz para comida francesa, da qual sou fã, e prefere forrar o estômago em casa para não ter que passar perrengue na rua. Portanto, discordamos radicalmente : ela odeia, eu adoro – é tanto um direito dela quanto meu. Se eu pretender ou induzi-la a concordar comigo a fim de sentarmos à mesa de um restaurante parisiense em torno de um « confit de canard » , morrerei de fome e perderei uma amiga. Ela corre menos risco porque eu adoro feijão com arroz, mas o raciocínio no sentido inverso continua valendo.



O que não impede a nenhum dos dois de compreender a riqueza sensorial e histórica da culinária francesa, e de reconhecer, além do gosto de cada um, os motivos que fazem dela uma das mais inventivas, bonitas e refinadas e que cultura universal, até então, foi capaz de criar. A « cuisine française » não é meramente um conjunto de receitas e ingredientes, é uma « instituição », no sentido em que institui um modo de vida e uma concepção estética e degustativa da temporalidade: é toda uma orquestração do conviva com a atmosfera e o ritmo que envolve a refeição – o aperitivo, a mesa, a entrada, o pão, o vinho, o prato principal, a sobremesa, os queijos, o digestivo, os intermináveis bate-papos, as baforadas de cigarro. Da mesma forma, um texto é mais do que um simples conjunto de gostos e preferências : é uma orquestração de ideias, e compreender um texto é ser capaz de perceber a orquestração interna que as fundamenta. Discordar simplesmente por discordar, defender simplesmente por defender, atacar simplesmente por atacar, é não ver as possíveis orquestrações do mundo. Minha amiga pode continuar a torcer o nariz para « aqueles queijos fedorentos » como ela diz, e eu, a sentir água na boca só de pensar neles, os dois vivendo em paz, à mesma mesa, cada um com seu prato. É bom que seja assim. Como diz Schiller: agradar a todo mundo é perigoso.



Trazendo o « arroz e feijão » ao momento político atual. Eu posso ser contra o impeachment e compreender as razões que levam uma pessoa a apoiá-lo, assim como o contrário. O que me autoriza a classificar todos os que são contra o impeachment de corruptos, ou todos o que o apoiam de golpistas ? Que autoridade é essa ? Que democracia é essa ? A verdadeira esfera da democracia não é feita de simples concordância ou discordância, simples defesa ou ataque, é feita de compreensão. Entenda-se : compreensão das diferenças e afirmação do direito de cada uma ser como é em respeito mútuo.



Por fim, se através da minha letra eu me faço compreender, alegro-me com isso. Se, por sua vez, os que me leem alegram-se com ela, alegro-me tanto mais. Porém, se num ou nos dois casos isso não acontecer, não faz mal : escrever para mim é uma espécie de urgência amorosa, e esse chamado – peço licença por esse egoísmo - ninguém toma de mim. Escrevi dia desses : sou chama pensante, que arde e titubeia, mas insiste em pensar. O destino do pensar, aprendi com os gregos, é o diálogo. E como diz a colega Eliane Brum : o instrumento mais transgressor desse momento histórico é o diálogo. 

Claudio Pfeil 

2 de abril de 2016

1

Nem prego nem martelo



Francisco Klinger, Mesa impossibilitada de reuniões, Fundação Iberê Camarg, POA



Silogismo básico:

Se impeachment é sinônimo de golpe militar

Se lutar contra ditadura é necessariamente sinônimo de defesa do PT

Então todo mundo que não defende o PT é a favor da ditadura, certo? 

Agora, o silogismo inverso:

Se impeachment não é sinônimo de golpe militar

Se lutar contra a ditadura é necessariamente ser contra o PT

Então todo mundo que defende o PT é a favor da ditadura, certo?  

Um silogismo contradiz e invalida o outro, vice versa. Isso, claro, se um dos dois fosse verdadeiro. Acontece que nenhum dos dois é, o primeiro é tão falacioso quanto o segundo: ambos se equivalem na desmedida da boçalidade. Classificar como golpista todo mundo que defende o impeachment é um reducionismo tão golpista quanto classificar todo petista como corrupto. É preciso desconfiar dessas classificações genéricas que denotam, para além da raivosidade vigente, indigência intelectual. 

Ademais, os que martelam o primeiro silogismo de forma tonitruante, vestem camisa vermelha e arvoram-se em únicos defensores da democracia aos brados de “não vai haver golpe”, nada mais fazem do que servir de prego aos que martelam o segundo com similar tonitruância, vestem-se de verde-amarelo e bradam “minha bandeira jamais será vermelha”. Golpe que martela lá, é prego golpeado cá: os dois marteladores servem mutuamente de pregos. Dessa forma, acabarão todos pregados e o País mais furado do que “tauba de tiro ao álvaro, não tem mais onde furar”. Com o apregoado cá e lá, lá e cá, não estamos muito longe disso. 

Essa polarização de golpes e contragolpes, martelos e pregos - não sem o interesse e alavanca de partidos, sindicatos, políticos sanguessugas e populistas - só deixa, a meu ver, esta opção a quem, bem ou mal intencionadamente, lhe serve de sustentação: de que lado da boçalidade eu escolho martelar? 

Há uma outra forma de pensar e agir que não esse martelar. Essa é uma escolha minha: não sou prego nem martelo de ninguém. A escolha é de cada um. Não pretendo estar certo, também não penso estar totalmente errado. Sou chama pensante, que arde e titubeia, mas insiste em pensar. Contra? A favor? Somos naturalmente seduzidos pelo pensamento binário, antinômico: noite-dia, claro-escuro, certo-errado, homem-mulher. Prosseguir na curva aberta, vertiginosa, traço que delimita o pensamento com um tremor ou pontilhado qualquer de não sei – eis meu desafio. 

Esquerda/Direita, se assim posso dizer, já morreu: só os mitos e salvadores da pátria obstinam-se em brandir seu fantasma a fim de atemorizar e manipular pessoas contra um Leviatã, em favor de seu narcisismo e saldo bancário. O mundo mudou faz tempo, e essa mudança ocorre cada vez mais numa velocidade desafiante. É só dar uma olhada ao redor, a pé, de bike, ônibus, barco, avião, internet. É preciso inventar uma mentalidade nova, mais ainda, uma temporalidade nova: a difícil arte de desconstruir jargões carcomidos e construir ideias que possam dar conta, tanto quanto possível, dessas mudanças. 

E por um grão que seja de discernimento, basta dessa falácia de “mídia golpista”. Você leu isso? “- Mídia golpista”. Você leu aquilo? “- Mídia golpista”. Essa chatice não cabe mais num mundo onde tudo o que acontece se vê, se lê, se diz e se escreve em tempo real nos quatro cantos do planeta. Se é verdade, como diz Umberto Eco, que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”, não é menos verdade que elas transformaram nossa relação com os fatos, democratizando o acesso a suas múltiplas fontes. Quem diz “mídia golpista” já parou para se perguntar: o Le Monde é golpista? O El País é golpista? A simples palavra “mídia” já é uma generalização tão grosseira quanto fossilizada: não quer dizer mais nada. Mas vamos lá, manterei as aspas. Há “mídia” vendida? Há. Há “mídia” séria? Há. Óbvio, imparcialidade não existe, toda palavra se dá a partir de uma posição. Isso vale para todos - digo bem todos - os campos onde a palavra é proferida. Meu pai contava uma história que nem sei se é verdade, ou se foi ele quem inventou: o chefe de um jornal pediu a um editorialista que escrevesse um artigo sobre Jesus. O editorialista indagou: contra ou a favor? Não preciso dizer mais nada. Apenas isso: meu pai entendia alguma coisa sobre dialética e chamou-me a atenção para isso. 

Eu sou parcial? Sim, se por isso entende-se que minhas ideias se enraízam num terreno social, econômico, profissional, cultural etc. Quem me lê é parcial? Sim, pelas mesmíssimas razões. Daí forjar a ideia de que todo mundo é vendido e que o universo inteiro conspira contra João, Maria ou José, tem um nome: balela ideológica. Nisso, faço meu o dito de Heloisa Helena: “Esse 'mi-mi-mi' de cínica vitimização já vi (...) Como sou parte dos sobreviventes da árida caatinga, prefiro a máxima popular do meu sertão: 'Quem for podre que se quebre', aqui e alhures". 

O destino do pensar é o diálogo, não o embarreiramento ocasionado por marteladores, os quais, em defesa de ideais supostamente democráticos ou de gente de bem, promovem sub-repticiamente o ódio e a polarização, nada mais do que formas de exclusão da diferença e alteridade. Isso transforma a praxis do dia a dia numa "mesa impossibilitada de reuniões", tal o título da magnífica obra de Francisco Klinger. 

Quem tem olhos que abra, veja, leia, interprete. A visão será tanto mais vasta e arguta quanto o espírito se exilar dessa polarização arcaica e beócia, isso sim, golpe baixo na inteligência de quem minimamente pensa. Trocar por trocar, passar de prego a martelo, de martelo a prego, é chancelar nossas mazelas políticas e deixar tudo do jeito que está. É preciso, sim, focar no que me parece ser nossa única chance de não chafurdar de vez nessa lama toda: reforma política. Dia desses escrevi: se o pé da mesa está bichado, de nada adianta trocar o tampo. Muito menos servir de prego ou martelo a quem se banqueteia à mesa arrotando podridão.

Claudio Pfeil