2 de abril de 2016

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Nem prego nem martelo



Francisco Klinger, Mesa impossibilitada de reuniões, Fundação Iberê Camarg, POA



Silogismo básico:

Se impeachment é sinônimo de golpe militar

Se lutar contra ditadura é necessariamente sinônimo de defesa do PT

Então todo mundo que não defende o PT é a favor da ditadura, certo? 

Agora, o silogismo inverso:

Se impeachment não é sinônimo de golpe militar

Se lutar contra a ditadura é necessariamente ser contra o PT

Então todo mundo que defende o PT é a favor da ditadura, certo?  

Um silogismo contradiz e invalida o outro, vice versa. Isso, claro, se um dos dois fosse verdadeiro. Acontece que nenhum dos dois é, o primeiro é tão falacioso quanto o segundo: ambos se equivalem na desmedida da boçalidade. Classificar como golpista todo mundo que defende o impeachment é um reducionismo tão golpista quanto classificar todo petista como corrupto. É preciso desconfiar dessas classificações genéricas que denotam, para além da raivosidade vigente, indigência intelectual. 

Ademais, os que martelam o primeiro silogismo de forma tonitruante, vestem camisa vermelha e arvoram-se em únicos defensores da democracia aos brados de “não vai haver golpe”, nada mais fazem do que servir de prego aos que martelam o segundo com similar tonitruância, vestem-se de verde-amarelo e bradam “minha bandeira jamais será vermelha”. Golpe que martela lá, é prego golpeado cá: os dois marteladores servem mutuamente de pregos. Dessa forma, acabarão todos pregados e o País mais furado do que “tauba de tiro ao álvaro, não tem mais onde furar”. Com o apregoado cá e lá, lá e cá, não estamos muito longe disso. 

Essa polarização de golpes e contragolpes, martelos e pregos - não sem o interesse e alavanca de partidos, sindicatos, políticos sanguessugas e populistas - só deixa, a meu ver, esta opção a quem, bem ou mal intencionadamente, lhe serve de sustentação: de que lado da boçalidade eu escolho martelar? 

Há uma outra forma de pensar e agir que não esse martelar. Essa é uma escolha minha: não sou prego nem martelo de ninguém. A escolha é de cada um. Não pretendo estar certo, também não penso estar totalmente errado. Sou chama pensante, que arde e titubeia, mas insiste em pensar. Contra? A favor? Somos naturalmente seduzidos pelo pensamento binário, antinômico: noite-dia, claro-escuro, certo-errado, homem-mulher. Prosseguir na curva aberta, vertiginosa, traço que delimita o pensamento com um tremor ou pontilhado qualquer de não sei – eis meu desafio. 

Esquerda/Direita, se assim posso dizer, já morreu: só os mitos e salvadores da pátria obstinam-se em brandir seu fantasma a fim de atemorizar e manipular pessoas contra um Leviatã, em favor de seu narcisismo e saldo bancário. O mundo mudou faz tempo, e essa mudança ocorre cada vez mais numa velocidade desafiante. É só dar uma olhada ao redor, a pé, de bike, ônibus, barco, avião, internet. É preciso inventar uma mentalidade nova, mais ainda, uma temporalidade nova: a difícil arte de desconstruir jargões carcomidos e construir ideias que possam dar conta, tanto quanto possível, dessas mudanças. 

E por um grão que seja de discernimento, basta dessa falácia de “mídia golpista”. Você leu isso? “- Mídia golpista”. Você leu aquilo? “- Mídia golpista”. Essa chatice não cabe mais num mundo onde tudo o que acontece se vê, se lê, se diz e se escreve em tempo real nos quatro cantos do planeta. Se é verdade, como diz Umberto Eco, que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”, não é menos verdade que elas transformaram nossa relação com os fatos, democratizando o acesso a suas múltiplas fontes. Quem diz “mídia golpista” já parou para se perguntar: o Le Monde é golpista? O El País é golpista? A simples palavra “mídia” já é uma generalização tão grosseira quanto fossilizada: não quer dizer mais nada. Mas vamos lá, manterei as aspas. Há “mídia” vendida? Há. Há “mídia” séria? Há. Óbvio, imparcialidade não existe, toda palavra se dá a partir de uma posição. Isso vale para todos - digo bem todos - os campos onde a palavra é proferida. Meu pai contava uma história que nem sei se é verdade, ou se foi ele quem inventou: o chefe de um jornal pediu a um editorialista que escrevesse um artigo sobre Jesus. O editorialista indagou: contra ou a favor? Não preciso dizer mais nada. Apenas isso: meu pai entendia alguma coisa sobre dialética e chamou-me a atenção para isso. 

Eu sou parcial? Sim, se por isso entende-se que minhas ideias se enraízam num terreno social, econômico, profissional, cultural etc. Quem me lê é parcial? Sim, pelas mesmíssimas razões. Daí forjar a ideia de que todo mundo é vendido e que o universo inteiro conspira contra João, Maria ou José, tem um nome: balela ideológica. Nisso, faço meu o dito de Heloisa Helena: “Esse 'mi-mi-mi' de cínica vitimização já vi (...) Como sou parte dos sobreviventes da árida caatinga, prefiro a máxima popular do meu sertão: 'Quem for podre que se quebre', aqui e alhures". 

O destino do pensar é o diálogo, não o embarreiramento ocasionado por marteladores, os quais, em defesa de ideais supostamente democráticos ou de gente de bem, promovem sub-repticiamente o ódio e a polarização, nada mais do que formas de exclusão da diferença e alteridade. Isso transforma a praxis do dia a dia numa "mesa impossibilitada de reuniões", tal o título da magnífica obra de Francisco Klinger. 

Quem tem olhos que abra, veja, leia, interprete. A visão será tanto mais vasta e arguta quanto o espírito se exilar dessa polarização arcaica e beócia, isso sim, golpe baixo na inteligência de quem minimamente pensa. Trocar por trocar, passar de prego a martelo, de martelo a prego, é chancelar nossas mazelas políticas e deixar tudo do jeito que está. É preciso, sim, focar no que me parece ser nossa única chance de não chafurdar de vez nessa lama toda: reforma política. Dia desses escrevi: se o pé da mesa está bichado, de nada adianta trocar o tampo. Muito menos servir de prego ou martelo a quem se banqueteia à mesa arrotando podridão.

Claudio Pfeil


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