27 de novembro de 2015

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Saudade do-nada



Passage Verdeau, Paris

Comovente o minuto de silêncio, hoje, ao meio-dia, em toda a França. Saudosista não sou, nunca fui. Mas, confesso, naquele minuto exato de silêncio no meio da multidão, bateu uma saudade danada, assim, do nada.
Saudade milenar, ancestral, daquelas que ficam coladas nos álbuns de figurinhas, nos livros de quando era criança. Saudade colorida, aventurosa, cheia de perigos que existiam, não para desgraçar a vida, mas porque sem eles a vida seria totalmente sem graça.
Saudade de Monteiro Lobato, Andersen, Exupéry, do Meu Pé de Laranja Lima, do quintal de Resende, de As Mil e uma Noites. Saudade do tempo em que sultão, marajá, Ali Babá, Aladim me faziam amar todas as terras e homens do planeta e me sentir amado e acolhido por todos eles. Saudade de lutar não para destruir cidades, devastar a natureza, massacrar pessoas, mas porque isso fazia a gente rolar no chão, se fingir de morto e morrer de rir disso. Saudade de não saber o que é religião ou raça pois a única coisa que importa na vida é a amizade. Saudade de dizer: agora chega, cansei dessa brincadeira, vamos lá em casa tomar um lanche?
Saudade de elefante, camelo, deserto. Saudade de ficar mudo diante de Gizé: como um grão de areia pode construir algo tão gigante? Saudade do mergulho no Nilo, de pular de alegria - estou dentro do Nilo! estou dentro do Nilo! estou dentro do Nilo! – as palavras rindo-se umas com as outras diluindo-se nas águas, para finalmente calarem-se ante o espanto da absoluta fragilidade de existir que faz o maravilhamento da vida.  Saudade do tempo que reverencia o tempo, do homem que reconhece o homem em respeito humilde ao que sempre se esvai, do amor que desconhece estrangeirices, pula cercas, faz da terra mais distante um coração. Saudade do tempo em que Isis era tão somente a deusa da maternidade e da fertilidade, símbolo do renascimento e da harmonia cósmica.
Saudade da vida que tem valor não porque dementes e perversos resolvem a qualquer momento acabar com a história singular de cada um. Saudade da vida que se lambe os beiços de beijos, recobre os corpos de carinho, não de estilhaços. Saudade dos recomeços, de virar a página, dar fim a certas coisas. Saudade de achar que somos figurinhas do mesmo álbum, da mesma história, do mesmo quintal, do mesmo rio que se esvai: cada um é uma saudade que se cola em algum lugar, uma vida que só tem graça em se descolar ou morrer, quando é de brincadeira. De resto, puro fluir e esvair natural das coisas. Por quê? Saudade de achar que há um porquê para tudo e que se a gente não entendeu agora, vai entender depois.
Um minuto de silêncio no meio da multidão, um silêncio feito de não-porquês, do incontrolável da vida, do que justamente é fora de sentido. Diante de um crime abominável, a gente tenta uma explicação: por quê? Como é possível alguém agir assim? Matar por matar primeiro, se explodir depois. Não tem explicação. O silêncio demanda justamente o que em si é inomimável, irrespondível, um nada de sentido. Bateu a saudade. Minha saudade é puro descabimento, saudade danada, assim, surgida do-nada. 
Enquanto o silêncio demanda o impossível, a saudade presentifica o nada.

Claudio Pfeil

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