16 de março de 2015

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Revanche de Sibylle

Ana Beatriz Nogueira no monólogo "Um Pai", de Sibylle Lacan

Quando a letra bem escrita encontra a escrita bem encarnada, o resultado em cena é este: o privilégio de quem assiste.

É sem palavras, ou melhor, com palavras tantas que beiram o indizível, que assisti ao encontro de Sibylle Lacan e Ana Beatriz Nogueira, na peça UM PAI, de autoria da primeira, encenada pela segunda. Um verdadeiro primor, uma e outra. O texto é belíssimo, a interpretação, de carne e osso. Sobre Lacan o pai? Não. Sobre a filha do grande Lacan? Não. Sobre um dos mais brilhantes psicanalistas e intelectuais do século XX? Não. Sobre o que, sobre quem, então? Sobre a falta. Falta da filha. Falta do Pai. Falta sentida, falta subjetivada, falta falada, falta encarnada, falta endereçada.

Por quem? Por uma filha rejeitada por um pai malvado? Não. Por uma filha rancorosa em relação a um pai mulherengo? Não. Por uma filha complexada por sentir-se justamente não-filha de pai nenhum? Não. Por uma filha, filha de...filha do...filha da p...? Não. Por quem então? Por um sujeito na posição que é a de cada um de nós, posição estrutural, originária e imaginária, posição de demanda, demanda de amor. Demanda que se enraíza nas profundezas da fantasia, esse véu que tecemos diante do abismo da falta.

E eis que esse sujeito da falta é sujeito de fala. Falta porque fala, fala porque falta. E esse faltante/falante, sobe à cena e fala. Fala do pai, fala da falta, falta do pai, falta da fala, falta sem nome. Falta, falta, falta! Mas sempre falta de um sujeito. Seu nome, Sibylle, mas poderia ser Caroline, Judith, Thibault (nomes de seus irmãos), Louise (nome da mãe), ou Jacques (nome do pai). Mas é Sibylle, um sujeito singular, como cada um de nós o é.

Mas o que é ser um sujeito singular? É justamente dar à falta um endereçamento, com remetente e destinatário. É assumir-se como aquele que falta a si mesmo, sujeito da falta. É transformar o envelope doloroso de queixas numa escrita de vida, numa recriação de si a partir justamente dos fragmentos do próprio trauma que é viver, vida de falas, de nomes, de faltas.

Assim fez Sibylle. Reuniu as peças de seu quebra-cabeça num envelope, e através do endereçamento que a ele deu, foi capaz de inventar uma maneira sua de estar no mundo, menos assujeitada à queixa, isto é, aos tormentos costumeiramente imputados ao Outro.

A última cena da peça é tão sublimemente linda quanto simbólica: Sibylle posa suas mãos sobre a lápide gelada do pai - cenicamente, uma cuba transparente repleta d’água, iluminada por um feixe de luz. Mergulha as mãos na água, a revolve, seu corpo inteiro exulta, tremula, sorri. Um pai ausente, gelado? Que nada. Sente o calor da presença do pai, as mãos que ele lhe dava quando iam os dois sozinhos ao restaurante e ficavam em silêncio. O toque das mãos. As mãos revolvendo as águas mortas, a exumação dos fantasmas que tanto lhe atormentaram a existência: meu pai, você sabe que sou sua filha, eu sei que você sabe. Eu sei!  Da falta do pai à fala ao pai, de vítima do passado a sujeito da história: um saber se inaugurou frente ao pai ausente. De certo, esse “fruto do desespero” como ela própria dizia ser, sabe perfeitamente que não jogou uma partida feliz, pelo contrário, mas um horizonte de uma partida nova, sem amarguras, se desvelou pela seiva de si própria. Através da escrita, da fala, do endereçamento. 

Sibylle reinventou sua verdade, fez sua revanche. Não uma revanche rancorosa, repetitiva, feita de queixumes e demandas chorosas, mas uma revanche libertadora. Doravante, Sybille pôs seu pai na lápide, e deu à falta do pai uma assinatura: esta falta, sou eu. 

Sibylle e Ana Beatriz Nogueira: uma faz a revanche, a outra faz a gente gritar "Bravo!"



"Um Pai", com Ana Beatriz Nogueira, direção de Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia, texto baseado no livro homônimo de Sibylle Lacan e adaptação de Evaldo Mocarzel. Em cartaz CCBB Rio de Janeiro

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