28 de março de 2015

0

Poasia





Estação de trem de Tristeza, Porto Alegre, 1910

Tristeza. Passei por ela, vi a placa. Lembrei-me da encomenda do Diário. Nome de rua tal, número tal, bairro: Tristeza. Isso mesmo, Tristeza. Achei poético demais, pareceu-me verso do Quintana. Tem Diário no verso, na Tristeza.

Tristeza verso tem reverso, é lenda, dizem: onde hoje é o bairro, havia faz tempo uma chácara cujo dono de tão triste com a morte da amada passou a ser conhecido como “o Tristeza” – “Vai aonde? Vou lá no Tristeza". Acabou morrendo de amor o Tristeza, de tristeza: cumpriu seu destino de ser triste até o fim, tristeza sem fim. Ó tristeza.

Verso, lenda, realidade

Foi-se a amada, ficou o Tristeza
Foi-se o Tristeza, ficou a chácara
Foi-se a chácara, ficou a Tristeza
Foi-se a tristeza, ficou a poesia

Porto Alegre 
Tristeza
Tristezalegre 
Poa:
Poasia

19 de março de 2015

0

Com o pau na mão


Eduardo Cunha admite
Eduardo Cunha demite
Eduardo Cunha aumenta
Eduardo Cunha corta
Eduardo Cunha pressiona
Eduardo Cunha ganha
Eduardo Cunha exige
Eduardo Cunha nega
Eduardo Cunha ameaça
Eduardo Cunha cede
Eduardo Cunha fala
Eduardo Cunha cala
Eduardo Cunha mostra
Eduardo Cunha esconde
Eduardo Cunha vocifera
Eduardo Cunha amansa
Eduardo Cunha morde
Eduardo Cunha assopra
Eduaurdo Cunha prende
Eduardo Cunha solta
Eduardo Cunha bate
Eduardo Cunha afaga
Eduardo Cunha isso
Eduardo Cunha aquilo

Cacete! Eduardo Cunha tem o falo do tamanho do Brasil!
Alguém tem dúvida de quem realmente está com o pau na mão?

0

Engodo da gozobrigação


Gozar é um imperativo na sociedade atual. Passamos de uma época onde gozar era tabu/pecado a outra onde gozar é uma obrigação: goze! goze! goze! Era da gozobrigação: nenhuma falta, nenhuma tristeza, nenhuma ferida são toleradas. É a ideia de que a incompletude humana é sanada com o consumo: a gente tem que consumir para ser feliz, quem não consome, está f....

Consumir e gozar: eis o mandamento da nossa era, era da gozobrigação globalizada. A publicidade, a indústria de remédios, do cinema, do sexo, os iPods, iPhones, os i mais não sei o quê 1, 2, 3, 4, 5, 6 e infinitamente, estão aí para isso: abafar a falta e vender felicidade. Há um anúncio de refrigerante que diz: "abra a felicidade". Genial. Digo, um engodo genial. É nesse "engodo da gozobrigação" que estamos todos afundados, nossas vidas, nossos corpos, nossa sexualidade, nossa alma, e a que "50 tons de cinza" nos leva a refletir. Bem podemos chamá-lo "50 tons de um engodo".

https://www.facebook.com/events/1547846972156068/



18 de março de 2015

0

De-trator à altura?


Dos meus tempos de Filosofia na Sorbonne, um dos ensinamentos mais valiosos que trouxe para minha vida foi este, dito por uma grande mestre: "il faut être à la hauteur de ce que l'on critique"

É preciso estar à altura do que se critica. Michel Onfray, filósofo detrator da psicanálise, mais badalado por isso do que por suas ideias filosóficas, talvez nunca tenha atinado para tal. Imaginou que pudesse ler e compreender a fundo Freud em seis meses, e a partir de então, demoli-lo com o trator de provocações bombásticas movido por seu carisma sedutor. Quanto mais o trator arrasa, mais o de-trator parece se comprazer diante do espelho. Sua primeira investida contra Freud foi o "Livro negro da psicanálise", lançado em 2010. Cinco anos depois, foi a vez da segunda: "O Crepúsculo de um ídolo. A fabulação freudiana", numa alusão ao título da obra de Nietszche. Deste último, Onfray, sejamos honestos, herdou por assim dizer a virulência, só. Mas o que é a virulência por si só? Deixo a pergunta no ar. O que sobra da Psicanálise depois do de-trator? Resumidamente isto: a teoria do inconsciente é balela, a psicanálise é um placebo e só é válida para as próprias neuroses de Freud. Deixo a conclusão do de-trator à livre (psic)análise de cada um.

O que me interessa por ora é o seguinte: Michel Onfray está à altura do que ele critica? Não me atrevo. Quem sou eu para responder? Mas outros respondem por mim, e eu subscrevo. Vou citar apenas dois.

Elisabeth Roudinesco, que dispensa apresentação. Mesmo assim, direi que trata-se não somente de uma psicanalista renomada assim como  das mais respeitadas historiadoras e biógrafas da França: sua obra perpassa a Revolução Francesa, Filosofia, Epistemologia, Judaísmo, e naturalmente Freud e Psicanálise (seu último livro é uma biografia de Freud justamente). Escreveu o roteiro de um belíssimo documentário intitulado "Freud e a invenção da Psicanálise. Amando-a ou não, há que se estar a altura dela. Foi precisamente Roudinesco quem se deu o trabalho, digno de um historiador obsessivo, de fazer o que ela mesma qualificou de “inventário dos erros e desvios” cometidos por Michel Onfray, numa espécie de livro-resposta ao de-trator intitulado: Por que tanto ódio?Vale a pena ler. No mínimo damo-nos conta do seguinte:  é nas alturas que a autora se coloca para desmontar peça por peça do de-trator raso.

Jacques-Alain Miller, precisa  apresentar? "Herdeiro espiritual da obra de Lacan", se diz e se repete nos quatro cantos do mundo. Já virou um sobrenome: Jacques-Alain Miller-herdeiro-espiritual-de-Lacan. Quer queiram seus admiradores, quer torçam a cara seus desafetos. Só vou dizer uma coisa. Sem ele, a Psicanálise hoje não seria o que é: se Lacan falou, foi Jam, como brincamos em chamá-lo em Paris 8, que escreveu e publicou, e continua a fazê-los. Mutatis mutandis, arriscando uma analogia longínqua e chistosa, Lacan é Sócrates, JAM é Platão. Amando-os ou não, há que se estar a altura deles.

Pois bem. Acabo de ler o longo artigo "Onfray déménage", de autoria de JAM, publicado em La régle du Jeu (http://laregledujeu.org/2015/03/18/19763/onfray-demenage/). Uma vez não bastou, tive que ler e reler. Se Roudinesco faz um “inventário dos erros e desvios” do de-trator da Psicanálise, aqui é questão de Política no sentido grego da palavra, virtude do filósofo, homem da ágora, do espaço público. Reflexão fina, complexa, contundente, misteriosa, irônica, erudita, bem ao estilo de JAM. Há que se ter fôlego, não é para qualquer um.

Não é mesmo. O artigo de JAM tem destinatário certo. E não mede palavras, ou melhor, mede cada palavra, com régua e estilete. 

Talvez seja este o momento do destinatário ouvir o ensinamento da grande mestre da Sorbonne: "é preciso estar à altura do que se critica". E deixar o de-trator por um instante de lado, e se perguntar ante o espelho, sem charme ou artifício: sinceramente, estou?  

16 de março de 2015

4

Revanche de Sibylle

Ana Beatriz Nogueira no monólogo "Um Pai", de Sibylle Lacan

Quando a letra bem escrita encontra a escrita bem encarnada, o resultado em cena é este: o privilégio de quem assiste.

É sem palavras, ou melhor, com palavras tantas que beiram o indizível, que assisti ao encontro de Sibylle Lacan e Ana Beatriz Nogueira, na peça UM PAI, de autoria da primeira, encenada pela segunda. Um verdadeiro primor, uma e outra. O texto é belíssimo, a interpretação, de carne e osso. Sobre Lacan o pai? Não. Sobre a filha do grande Lacan? Não. Sobre um dos mais brilhantes psicanalistas e intelectuais do século XX? Não. Sobre o que, sobre quem, então? Sobre a falta. Falta da filha. Falta do Pai. Falta sentida, falta subjetivada, falta falada, falta encarnada, falta endereçada.

Por quem? Por uma filha rejeitada por um pai malvado? Não. Por uma filha rancorosa em relação a um pai mulherengo? Não. Por uma filha complexada por sentir-se justamente não-filha de pai nenhum? Não. Por uma filha, filha de...filha do...filha da p...? Não. Por quem então? Por um sujeito na posição que é a de cada um de nós, posição estrutural, originária e imaginária, posição de demanda, demanda de amor. Demanda que se enraíza nas profundezas da fantasia, esse véu que tecemos diante do abismo da falta.

E eis que esse sujeito da falta é sujeito de fala. Falta porque fala, fala porque falta. E esse faltante/falante, sobe à cena e fala. Fala do pai, fala da falta, falta do pai, falta da fala, falta sem nome. Falta, falta, falta! Mas sempre falta de um sujeito. Seu nome, Sibylle, mas poderia ser Caroline, Judith, Thibault (nomes de seus irmãos), Louise (nome da mãe), ou Jacques (nome do pai). Mas é Sibylle, um sujeito singular, como cada um de nós o é.

Mas o que é ser um sujeito singular? É justamente dar à falta um endereçamento, com remetente e destinatário. É assumir-se como aquele que falta a si mesmo, sujeito da falta. É transformar o envelope doloroso de queixas numa escrita de vida, numa recriação de si a partir justamente dos fragmentos do próprio trauma que é viver, vida de falas, de nomes, de faltas.

Assim fez Sibylle. Reuniu as peças de seu quebra-cabeça num envelope, e através do endereçamento que a ele deu, foi capaz de inventar uma maneira sua de estar no mundo, menos assujeitada à queixa, isto é, aos tormentos costumeiramente imputados ao Outro.

A última cena da peça é tão sublimemente linda quanto simbólica: Sibylle posa suas mãos sobre a lápide gelada do pai - cenicamente, uma cuba transparente repleta d’água, iluminada por um feixe de luz. Mergulha as mãos na água, a revolve, seu corpo inteiro exulta, tremula, sorri. Um pai ausente, gelado? Que nada. Sente o calor da presença do pai, as mãos que ele lhe dava quando iam os dois sozinhos ao restaurante e ficavam em silêncio. O toque das mãos. As mãos revolvendo as águas mortas, a exumação dos fantasmas que tanto lhe atormentaram a existência: meu pai, você sabe que sou sua filha, eu sei que você sabe. Eu sei!  Da falta do pai à fala ao pai, de vítima do passado a sujeito da história: um saber se inaugurou frente ao pai ausente. De certo, esse “fruto do desespero” como ela própria dizia ser, sabe perfeitamente que não jogou uma partida feliz, pelo contrário, mas um horizonte de uma partida nova, sem amarguras, se desvelou pela seiva de si própria. Através da escrita, da fala, do endereçamento. 

Sibylle reinventou sua verdade, fez sua revanche. Não uma revanche rancorosa, repetitiva, feita de queixumes e demandas chorosas, mas uma revanche libertadora. Doravante, Sybille pôs seu pai na lápide, e deu à falta do pai uma assinatura: esta falta, sou eu. 

Sibylle e Ana Beatriz Nogueira: uma faz a revanche, a outra faz a gente gritar "Bravo!"



"Um Pai", com Ana Beatriz Nogueira, direção de Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia, texto baseado no livro homônimo de Sibylle Lacan e adaptação de Evaldo Mocarzel. Em cartaz CCBB Rio de Janeiro